sábado, 2 de julho de 2016

DEVANEIOS MITOLÓGICOS OU SONOS EMBRUXADOS


O PAN E A BRUXA





Raramente descanso como deve ser, sereno e tranquilo, olhos fechados e sono reparador, libertação das sombras terrenas que envolvem meu espírito e o procuram subjugar. Infelizmente é assim, e me torno por vezes um ser a meias, metade vivo e metade morto. Esta situação não é cómoda, relembra-me ironicamente o outro que dormia revezando a vista aberta, para asseguradamente cuidar de seus haveres. Mas pior que um deambular incompleto, de dificuldades de acesso a tudo o que me rodeia desde a causa e a razão das cousas, ao raciocínio que patina, escorrega, parece querer falhar me obrigando a um esforço tenaz para chegar a conclusões no mínimo com algum bom senso, ainda este estado de alma me joga, como objecto desprovido de crítica para o meio de labirintos, enevoados, confusos, onde sou atormentado por uma multiplicidade de coisas tão estranhas que chego a pensar estar perante mais delírios que pensamentos, mais alucinações que ideias.

Tentei fazer uma sesta, as noites são terríveis. E admito que desapareci por algum tempo da ideia de espaço e tempo, de lugares e seres. Dito de um modo menos arrazoado, acho que adormeci por completo. o que segundo os técnicos de saúde, psicólogos e outros doutores em coisas da alma me deveria levar a um vazio mais ou menos povoado ou não de serenidades, tranquilidades e outras coisas que parecem não existir neste nosso mundo.

Erro. Total. Repentinamente estou na mitologia grega, sem sair do leito, e sem abrir os olhos. E à minha frente está o pouco inteligente Rei Midas, conhecido através de tantos séculos por duas particularidades, Ter recebido de recompensa dos deuses do Olimpo (Baco) o dom nada astuto de tudo o que tocava se transformar em ouro, e ter recebido de castigo precisamente dos deuses umas enormes orelhas de asno. Quanto ao célebre toque de Midas, como ficou conhecido o tocar e transformar o objecto que se tocou em ouro foi resolvido pois o deus Baco, perdoou a sua tacanhez de espírito e mandou-o banhar-se num determinado curso de água e o bom Midas lá pode sobreviver ao seu desajeitado desejo. 






Mas em relação às orelhas de burro, grandes e peludas, nada havia a fazer pois não lhe foram colocados como no toque, por prémio, mas precisamente por castigo, Midas aliara-se a Pan e no confronto deste com Apolo foi o único ser no Olimpo que votou contra este Deus na avaliação dos dotes dos dois músicos Pan e Apolo. Pan tocava uma flauta que resultara da morte de uma ninfeta que perante ele se jogara de um precipício buscando a morte, e se transformara em cana. De parte dessa cana Pan fez a sua flauta e levava os dias passeando na floresta tocando com o seu instrumento musical. E convenceu-se que era um prodígio a tocar a flauta, apesar do som que aquele instrumento produzia, um pouco roufenho, rústico, arrastado, e de tal modo que foi desafiar para uma prova o Deus Apolo, que era nem mais nem menos que o Deus que simbolizava a perfeição e de cuja arpa saíam sons maravilhosos, puros, perfeitos.Apolo nem se deu ao trabalho de se enfurecer com Pan era conhecido por ser um ser horrível e por levar a vida perseguindo ninfetas. Mas aborreceu-se com Midas o único que achou que a besta tinha tocado virtuosamente melhor. E como no conceito de justiça antes dos Socráticos, o castigo tem a ver com a causa. A péssimo ouvido Apolo respondeu com orelhas grandes, peludas, que filtravam o som, e o pobre Midas mais uma vez se via em apuros pela inteligência muito limitada que possuía. Infeliz, triste da sua fealdade, tapou a cabeça com uma imenso manto e ninguém podia ver as suas orelhas. Mas um dia teve de ir ao barbeiro, e logicamente este viu as enormes orelhas de Midas. Mas Midas ameaçou-o de morte se alguém viesse a saber daquela tragédia. O barbeiro teve que aceitar mas cada dia que passava sentia maior desejo de contar o seu segrego. E o segredo atormentava-o. Sentia necessidade de contar o que vira. Mas entre o medo de Midas e falar, calava. Até não poder mais. E assim, completamente a rebentar de todo o esforço que o segredo lhe impunha, cavou um buraco, e colocando a cara junto ao solo, falou para dentro dele "O rei Midas tem orelhas de asno". E aliviou a pressão e andava fazendo sua vida normal. Mas chegou a Primavera e uns ventos, que se encontraram junto ao buraco do segredo, destaparam-no,e a parir desse momento, era normal ouvir ecoar pelos vales fora "O rei Midas tem orelhas de burro".




Cansado de Midas, de Pan, de Apolo e de orelhas de burro, ainda num estado em que não consigo identificar perfeitamente se estava meio a dormir ou meio acordado e associou-se-me a ideia da bruxa que me anda a perseguir em meus sonhos, de uma fealdade inimaginável, e ainda mais horrível por dentro que por fora, é de crer, e campeã da maldade, pérfida, mesquinha, diabólica. Tentei desviar esses tenebrosos actos que desconheço donde aparecem, quem os cria, o que representam, mas vieram a misturar-se com Midas e os deuses do Olimpo e com o fenomenal Pan que de tão horrível provocava nos que o encontravam um sentimento que a história nunca escondeu, pânico. (É justamente da mitologia grega que nasce esta palavra que ainda hoje é usada). E o Pan e a bruxa, muito mais racionalmente que o Pan e as pobres ninfetas, configuravam um quadro sem contraste, tudo encaixa, tudo bate certo, tudo é demasiado monstruoso. Dei mais umas voltas na cama, mas não me saía da ideia, Pan e a bruxa, razão bastante, para quebrar aquele ciclo demolidor de pensamentos ou loucuras, para considerar que a bruxa era o resultado de um castigo também de um deus do Olimpo poderoso e que castigou aquela criatura em moldes de justiça mitológica, atribuindo-lhe o aspecto que necessariamente deveria ter face ao crime ou abuso praticado, e a pulverizou de todos os maus sentimentos. Tão horrível ficou, e adormeci profundamente em paz ao descobrir esta razão, que Pan deve ter deixado de perseguir as jovens e belas ninfetas para se acomodar de amores com a sua parceira de jornada a bruxa horrenda. Adormeci...

Sem comentários:

Enviar um comentário