sexta-feira, 31 de julho de 2009

A crise vai de férias

Vamos de férias, partimos, estrada fora, fugindo à realidade de um quotidiano que nos esmaga. Apenas temos a vantagem perante os demais cidadãos desta Europa que deveria ser efectivamente nossa, e teima em parecer só de alguns, do costume. Que aqui dizem não ser fonte de direito, mas, bem vistas as coisas, tem um inimaginável peso.

Pelo costume morre o português. O outros choram e protestam uma crise a todos os títulos deplorável por geradora de perca de rendimento, de desemprego, de perda de qualidade de vida, de direitos, de ânimo e de bem estar. O nosso costume diz-nos que estamos iguais, como sempre, numa crise, igual a tantas outras que por aí batem, como ondas do mar varrendo a praia. Vai e volta, volta e vai, só é o cabo dos trabalhos se vai... e não volta.

O costume, bem nosso, diz-nos que nada é por demais preocupante, temos capacidade de defrontar uma série reiterada de crises, porque somos especialistas. Não as conseguimos vencer, juntámo-nos a elas. Precisamos delas para acordar de manhã. Para sairmos da cama. Para irmos trabalhar. Para seguirmos o nosso dia-a-dia, sem inquietações, pelo menos com o futuro, que também, já sabemos, pelo bendito costume, não será melhor que o dia de hoje.

Garantimos mesmo, não venha por aí o diabo, que nada mudará, queremos tudo igual Por isso temos uma justiça que leva um ror de anos para decidir coisa nehuma. A justiça fora de tempo dizem é injustiça. De tal modo, que em bom rigor, seria mesmo mais produtivo que nada fizesse, deixando o pequeno delito, para respeitar essa ideia de sermos todos iguais, afinal, como o grande crime ou o crime de gente grande, que a bem dizer, é o mesmo que nada fazer. Poupava-se tempo e possivelmente recursos, de todo o género. E não se criavam expectativas que desvirtuam um país já com quase um milénio de história.

Teimamos em manter-nos em crise apostando vigorosamente na manutenção, com aplauso e distinção, daqueles que nestes últimos anos tem diligenciado em nos desgovernar, garantindo assim, deste modo, uma resistência louvável dos portugueses ao mau viver, à vida sem esperança, ao caminho sem futuro.

Aplaudimos um ensino a necessitar urgentemente de reformas, de má qualidade, historicamente em crise, humilhando na praça pública os professores, facilitando sucessos por via administrativa, levando a cátedras pessoas que não sabem para elas quanto mais para ensinar, cuidando de colocar nas mesmas salas de aulas alunos necessitados de cuidados especiais com os demais, esquecendo a existência de discriminações positivas, e assim, agitando todos esses ingredientes se assegura a manutenção, por muitos mais anos, de uma desejável crise na educação.

Ele há crise em cada português, de tristeza, de sonho, de esperança. E de trabalho. Foi hábito que custou imenso, acabar com o amor ao trabalho, não é previsível agora assistir-se como antigamente, às lágrimas no canto do olho do trabalhador impossibilitado de prosseguir trabalho por ter alcançado os setenta anos de idade. Continuavam só por cunha e da grande. Hoje, respira-se aliviadamente no país, os trabalhadores estão, por fim, tão fartos e mortinhos da desordem e desorganização laboral, das rocambolescas avaliações por mérito, do reconhecimento da dedicação e esforço com recurso a suculentos prémios, do compadrio, que anseiam por reformar-se, por deixar de produzir, por nada fazer. O governo, e bem, para responder a tão agressivas irresponsabilidades e faltas de reconhecimento, castiga os trabalhadores aumentando a idade e dos anos de trabalho para se aposentarem. Assim, mostrando uma sábia sensibilidade, e uma astúcia sem limites, se garante por um lado um mundo que quer parecer que é, mas que não é nada assim, e se mantêm, a todo o custo, o costume, o que quer dizer, a crise.

Os portugueses deveriam ter acesso no Oportunidades do senhor engenheiro Sócrates ao cargo de doutores em crises. Barato, sem custos, recebendo com pompa e circunstância um Magalhães em cerimónia televisiva, e uns trocados de subsídio de frequência. Só precisando explorar o conhecimento prático praticamente ilimitado, de cada dia, e mais meia dúzia de teorias de trazer por casa. E seria ver os portugueses a explicar, mundo fora, como viver paulatinamente em crise. Como superar qualquer crise desde a económica, á financeira, á de valores, à pessoal, à de tudo e mais alguma coisa. Abrir-se-iam lugares para ensinar na Sorbonne e em Salamanca, e nos Estados Unidos. E mundo fora. Os portugueses transformavam-se nos salvadores do mundo, agilizando complexos expedientes que sempre se exigem para viver digna e tranquilamente em crise e evitando tanta desgraça que sempre decorre no ser humano sem preparação quando vive mal.

Tal capacidade que não pode deixar de se reconhecer aos portugueses, não pode afinal, ser reconhecida pelos executivos, que por costume, inviabilizam, tudo o que pode transformar esta gente laboriosa e sem futuro, em gente vaidosa, segura, espalhando bem estar por aí. Já se vê, era o fim do costume, o fim da crise, o fim de tudo bem português. E o que é português é bom.

Vamos de férias, pois bem há que ir e voltar. Iguais, nada de mudanças, não agitem um país que vegeta, um cantinho de terra semeada de gente, que preferivelmente nada faz, e com isso, assegura, ao mesmo isso nos valha, fazer asneira. O melhor é mesmo fazer como todos fazem, principalmente os que temos de respeitar e devemos tomar como exemplo, nada fazer, ou, se acaso nos der essa vontade indomável de trabalhar, Deus nos ajude, já sabemos da história, vem aí desgraça.

Bem, vamos de férias, desejando que não levem de cá essa crise que sempre nos baixou os juros das contas que nos asfixiam, que não nos levem a crise que garante empréstimos aos ricos e aos bancos, e com isso se finge apoiar e cuidar do Zé descalço, e que esta permaneça ainda algum tempo, é que, em bom rigor, se ela vai, volta a outra crise, a nossa, e não sei bem quem nos vai valer.

Vamos de férias.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Para quê acordar?...

Há dias em que não sabemos bem o que dizer, nem do mundo, nem da nossa terra, nem dos nossos próprios campos de olhar, do que vemos, ou queremos, ou mesmo, por fim, nem temos bem claro o que de nós próprios poderíamos ousar, se loucos, ou simplesmente ser, e dizer.

Baralhamos as palavras, do mesmo modo que sentimos atabalhoadamente dispersas as ideias, o que sentimos, o que dentro de nós vai corroendo, dilacerando, batendo um pouco por todo o lado, como se, de cada batidela, de cada abanão, algo inexplicável quisesse alertar-nos com um simples, “…cuidado, não vás por aí!”.

E em boa verdade vamos, seguimos sempre um ou outro desnorte mais ou menos intenso de acordo com a hora, o sentido do vento, e as ilusões que sempre tentam afogar-nos, bloqueando a clareza do olhar, turvando tudo, para que facilmente imaginemos uma coisa que não existe tornada, com um simples toque de magia, coisa nossa.

E pior que a ilusão de um momento, de um mau acordar, de mil sonos que se apoderaram da realidade tolhendo do que é, de facto, todo um mundo de sombras, é um acreditar teimoso, arrogante, acintoso mesmo, só mesmo um pouquinho menos que toda aquele arrazoado petulante do político no trágico momento que sempre compõe o seu mundo de enganar, prometendo delicias, e semeando tragédia.

Temos dias, em que duvidamos de tudo, começando por duvidar da nossa própria maneira de estar e de sentir, do que dizemos e queremos, de nós, e assim, de tudo. Do que amamos, dos sonhos que queremos repentinamente catapultados para uma realidade visível e tangível, das imagens que construímos quando pensamos, ali, num qualquer campo estranhamente longínquo e muitas vezes transparente, e mesmo na sequencia de olhares, que tentam apoderar-se de coisas, em cada instante. Em todas as direcções possíveis, mesmo as que conscientemente sabemos não existir. Dentro, ou mesmo, fora de nós.

Hoje acordei incrédulo… com os outros, e comigo mesmo. O tempo estava inconstante, pouco certo, não podendo garantir acalmia, estabilidade, podendo desviar-se, a todo o tempo, para manifestações pouco simpáticas de borrasca. O sol, que sentia furioso atrás das nuvens, pontapeava algumas, de modo que, depois de algum chuto mais certeiro, mais balanceado de energias, cuspia milhentos raiozinhos atrapalhados, que não chegavam nem a dar calor nem luz, mas a prometer protestos e agitação.

Ainda não consegui libertar-me dessa interessantíssima actividade, que muitos crêem libertadora e responsável, heróica mesmo, de sair a trabalhar, o que para alguns é um esforço, ou parte dele, para, de modo honrado tentar libertar-me de uma inaceitável pobreza para contribuir serena e paulatinamente no engrandecimento de uns poucos e no crescimento da comodidade e bem estar de outros.

E assim, entre umas nuvens salpicando aquilo que às vezes percepcionamos como sendo um universo libertador cheio de anjinhos aos pulos e almas em rodopio, e uma estrada de negro vestida que nos embala, quilómetro a quilómetro, curva a curva, até despertarmos, um pouco ébrios, para isso do trabalho. Que nos faz acordar, e nos faz sentir escravos um pouquinho, tendo de sorridentes, fazer de peças de todo um aparelho mecânico, cheio de dentes, que engrenam em outros, e assim, abocanhados, e triturados entre essas massas esbranquiçadas que são as dentuças do labor, vamos perdendo um pouco da liberdade, e dispersando vaidades a cada dentada, a cada parte de nós que vai, saltando, entre actos, factos, fazeres, e afazeres sem fim.

Salva-nos acreditarmos na relatividade, uma estranha invenção ao serviço dos galácticos que mandam nas pessoas, da terra e de outros planetas – percebeu cedo a economia que atropelar resulta mais se um concentrado insuspeito estender as garras e trucidar mesmo o que longe, já parece ser de outros, mas ainda é, e tem de ser, convêm, só nosso – e que proclama, sazonalmente, como se de uma montanha russa se tratasse, uma amálgama intempestiva de direitos, da pessoa, e do trabalho.

E a relatividade, que nos garante girar desordenadamente o tempo se esquecermos o mundo das outras coisas enquanto corajosamente nos empenhamos em produzir, embriaga-nos, nessa ideia que quanto mais fizermos ao patronato ávido e pouco ligado a essas mariquices de humanidades, mais depressa chega o fim de semana, e depois de uns poucos, voltarão as férias, e a ociosidade será recompensa, imaginando não fazer, algo, para alegremente se fingir que se fazem outras coisas que curiosamente, deveriam corresponder como contrapartida a um ano de dar muito de nós a muito poucos.

Infelizmente, acabamos por raramente fazer aquilo que levamos um ano inteirinho desejando concretizar e que nos parece merecido. E acabamos por voltar, ordeiros, alegrotes, simpáticos, ao lugar do crime, onde de sorriso nos lábios tentamos fazer crer que gozámos imenso, e para o provar, deitamo-nos a novas tarefas como se tivéssemos aglomerado em algum canto do nosso interior uma carrada de energia sem fim.

Hoje acordei sem entusiasmo. Dizia um filósofo de casa de pasto, entre um copo de três e um amontoado de arrotos sabichões – desses saídos dos inúmeros e complexos exercícios de bem se mostrar adquiridos através das novas oportunidades – , que era impossível fazer mexer, ao contrário do que aos burros sucede, um humano desprovido de ânimo. E dizia ainda o pobre arruinado de haveres e de saúde, mas de copo erguido, avermelhado, na mão trémula, que o mal do país, residia aí, aí e só nesse dilema, na falta de entusiasmo. E, filosoficamente avançava argumentando ininteligíveis balelas, profundos raciocínios húmidos de tinto, mas sustentando, na sua essência, como se poderia avançar num pobre país onde as pessoas viviam tristes, sem esperança, ensonadas, numa letargia imensa, que só alguns eruditos da psicologia humana, aventavam tratar-se de um processo inconsciente de afugentar todos e tantos infortúnios de todos os lados fustigavam os portugueses.

Ignorância e entusiasmo, em medidas rigorosamente contrárias. Uma ignorância que podia transportar-nos a dar meia dúzia de voltas ao mundo, e um entusiasmo que nos tolhia o passo de tal modo, que só o facto de levantar em cada manhã, parecia heresia. E tudo isto ocorria enquanto uns engraçados foliões fingiam dirigir o povo, recorrendo a divertidas iniciativas, a tecnocráticas medidas, a cuidadas decisões, e a planos normalmente efectuados apenas com o objectivo de não importunarem, sendo esquecidos, mesmo antes de feitos. Em boa verdade, a classe política engordava com a letargia, com a falta de entusiasmo, com a falta de exigência. Mesmo que para algumas coisas revelassem algum espírito mais empreendedor, algum animo mais feroz, alguma vontade mais visível. Pena só que tanta vitalidade, e nisso se pareciam com o povo que os mantinha, como bem deveria ser – ou não existiria democracia – não servisse para coisa nenhuma.

Com a falta de entusiasmo definha o país, as pessoas perdem o sorriso nos rostos, a esperança e o sonho deixam de alimentar mentes que deveriam crer num dia melhor, num amanhã, nem que ilusão, nem que fosse apenas possível para meia dúzia e numa qualquer outra terra. O mundo gira, os portugueses vão andando, acordam e saem de casa sem lavar os olhos, sem ver. Como manda a prudência, é melhor nem olhar, e muito menos ver. Muitos já nem querem saber dessa patranha da democracia, do estado de direito, ou mesmo da partidocracia que parece instalar-se no poder. É tudo conversa de meia dúzia de compadres que se amanham com qualquer cor, e com qualquer fato. À conta do freguês pouco esclarecido e nada exigente. Endorminhado. Nem se esconde a corrupção, nem a corrida ao pouco que temos por parte de meia dúzia de chicos espertos que se agarram ao poder ou a quem nele se instala. É um vale tudo, mesmo que se tire um ou outro olho a algum distraído ou que se atreva a meter-se nos negócios alheios, torna-se lícito, desde que se saiba fazê-lo. Alguns recomendam-no mesmo, a prática do pouco recomendável como modo de impressionar a vizinhança e mostrar sucesso na vida obra com a facilidade do aumento do património.

Com a justiça que está ao serviço das gentes, mais de uns que de outros, claro está, dizem que é sempre assim (o contrário é ficção que sempre aparece nos filmes para enganar as massas) a maioria de se cuide que uma minoria conhecida joga em casa. Já se conhece muito antes o resultado de intermináveis jogos onde se gasta tempo e dinheiro, para não se chegar a coisa nenhuma. Ninguém quer. Nem o estado, que sobrevive facilmente no meio de toda esta trampa, e que procura passar despercebido entre as trapalhadas de gente grada, colunável nas revistas mais rosinhas, que sempre parece estar à beira do cárcere e subtilmente, como nas aventuras mais arrojadas, escapa sempre por uma insignificante nesga, nem o povo que adora espectáculos e suspira a qualquer acto mais intimista, nem os actores. Ninguém quer nada, nem decisões justas, nem intervenções temerárias, siga o baile, e que no alto se conservem os marqueses do amanho, a ralé de olhos no telejornal em hora de ponta, e que o estado vá garantindo, quanto mais não seja, umas boas lutas que tanto podem ser com professores como médicos ou magistrados. É preciso é sangue… espectáculo, toirada e arenas, imensas espalhadas por aí…

Hoje acordei, quando em bom rigor deveria ter feito um manguito a isto de trabalhar faz bem, e deveria ter permanecido deitado, olhos bem fechados, cérebro desligado… a ressonar sem qualquer controlo de decibéis. Deveria ter mandado às malvas os usos e bons costumes deste país e deveria ter preguiçado, tranquilo – quem não deve não teme – à espera de melhores dias.

Hoje, para meu desespero, nada me ajuda a esquecer o meu sonho doirado, perdido nas lonjuras imensas de outros mundos para lá, num céu azulinho e cheio de magia, onde a minha princesita, uma meia mistura de mulher e anjo, com um toque de sereia, outro de diabo, e mais uns poucos, difusos, ténues, relembrando musas, deusas e outras cosisitas lindas, mas afigurando existir em boa e rija carne e osso, e prometendo doces ternuras e infindáveis delícias, se afasta, irremediavelmente de mim. Porque se cansou de permanecer longe, tipo bela adormecida e de eu, não saltar cheio de destreza para cima do meu cavalo alado, e prego a fundo, percorrer mares, e céus, saltar pelas nuvens e patinar entre estrelas, me arrojando a seus pés, como um vulgar príncipe encantado, curvando-me ao seu colo, procurando nela uma das faces, ou os lábios, para o beijo miraculoso.

Acordei raivoso, perigosamente humano, e senti-me português, nesta minha raiva interior de ver que nada sou, e que, como se estivera num qualquer folhetim de terceira ordem, observando um caminhar cada vez mais escuro, um mundo cada vez mais amargo, o fim da alegria, mata e esfola a torto e a direito. Portugal coitado não tem culpa nenhuma de ser um ponto de convergência da mais incompetente gentalha que se pavoneia como a cigarra, vaidosa, numa vastíssima veste, sem limites, gigantesca, sem cor, nem brilho, transparente, que revela o que é, o que tem, uma nudez sem fim, que mostra um traseiro volumoso com falta de passagem de higiénico papelucho, e uma mente minúscula desprovida de senso ou de algo que mostre valia.

Hoje, percebi ao acordar que cada vez estou mais só. Como se tivera perdido todos os anéis e os dedos ressequidos não fossem capazes, per si, de atrair uma mão amiga, um abraço. Tive de descarregar todas as minhas mágoas e a revolta que trago dizendo cobras e lagartas de tudo o que conhecia e mesmo, confesso, de tanta coisa que não está acessível às minhas capacidades. Ataquei a justiça… só um louco ataca esse pilar dos estados modernos, da civilização, da cultura e sabedoria humana. Devo fazer mea culpa, e deveria penitenciar-me com uma quarentena em lugar escuro, e de onde, gritasse o que quisesse, não fosse possível a nenhum ser vivo, ouvir-me. Ataquei a governação, como se essa gente boa, que com espírito abnegado, e de sacrifício mesmo, prejudica os seus interesses e dos seus para, em troca de pouco, servir a causa pública. Ataquei meia dúzia de seres, que imaginei praticando ilícitos actos, como se nessa gente dada às ciências das economias e da produção da riqueza e do bem estar fosse possível atribuir semelhantes acusações, quando, se pode observar, vivem para os outros, para a governação das pequenas bases da nação, as famílias, produzindo salários, que às vezes se pagam, e trabalho que muitos esquecem executar. Ataquei, o povo, o pobre povo, coitadito, enganado à esquerda e à direita, por detrás e pela frente, cada vez pior, sem caminho para percorrer, sem heróis, sem sonhos. Seguindo obedientes o vizinho rico da casa amarela da rua da frente, o deputado do círculo que ainda tem muito que percorrer para pagar as promessas que fazia porta a porta, o partido respeitável da borboleta com o rato do computador, o clube da bola, o banco do jardim onde os reformados jogam à sueca e esquecem assim as contas na farmácia. O povo…

Hoje acordei quando deveria ter ficado na cama, olhos fechados… silencioso, escondido, não existindo. Ganharia o país, o pessoal lá da fábrica, o presidente da Câmara Municipal, e eu próprio, que não teria de gramar, horas e mais horas a ouvir toda esta peçonha que trago dentro de mim. Hoje, e por culpa do meu cavalo alado, que teima numa enxaqueca que lhe apanha os membros anteriores e inibe a rotação das orelhas, não é possível ver-me como pessoa, como gente, como povo. Possivelmente nem tenho já, essa possibilidade, sempre compensadora, de dizer mal dos políticos, do governo, dos padres, e da gente ratoneira que anda por aí, a tirar cursos subsidiados, de como enganar meio mundo. Nem posso estar com o meu amor, aquela princesa do outro lado do mundo que me faz suspirar e que desejo mais que a própria vida.

Hoje, aqui me sentindo só, sem vontade de ser, ou de estar, ou de coisa nenhuma, sem poder amar, ou dizer que amo, ou olhar a coisa que desejo, sinto mil fúrias em ter sido louco, e ter acordado, e ter saído da cama e de casa. Fui louco, abrindo os olhos para um mundo completamente perdido, e sem rumo, quando simplesmente poderia manter-me adormecido, desligado de coisas e loisas. Fui simplório quando percebendo o perigo de viver uma vida assim, desafiei mil perigos e saí de casa, podendo a todo o momento ser vítima de carjeking ou de malfeitores, ou simplesmente ser apanhado por alguma gripe vinda de um animal menor. Fui irresponsável quando me propus a trabalhar, quando isso é um verdadeiro atentado, num país onde gente séria e importante acumula reformas, e só trabalha, diz-se baixinho, para arranjar umas poucas mais. Agora, quem de facto trabalha, dizem com despeito os acumuladores de pensões, não pode reformar-se novo, que pode desequilibrar as contas públicas.

Pobre mundo, pobre país, pobre gente… hoje acordei, levantei-me da cama e fui trabalhar. Porquê?