"Algum dia, quando o tempo em que vivemos puder ser caracterizado, a principal surpresa será que tudo foi vivido sem antes ou depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história por notícias, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema da solução. Assim, as atrocidades poderiam muito bem ser atribuídas às vítimas; os agressores foram condecorados pela sua coragem na luta contra a agressão; os ladrões eram juízes; os grandes líderes políticos poderiam ter uma pequena qualidade moral em comparação com a magnitude das consequências de suas decisões. Foi um tempo de excessos vividos como deficiências; a velocidade era sempre menor do que deveria ter sido; a destruição sempre justificada pela urgência de construir. O ouro era a base de tudo,..."
"O impacto econômico da renúncia foi melhor e é por isso que foi confundido com esperança; ir para dentro, onde a esperança vivia nas ruas da indignação ou morria na violência doméstica, no crime comum, na fúria silenciosa das casas, nas salas de emergência dos hospitais, prisões e ansiolítico e antidepressivo, e o terceiro grupo foi entre dentro e fora, à espera, onde a esperança e a falta dela alternado como as luzes dos semáforos. Tudo parecia à beira da explosão, mas nunca explodiu porque estava explodindo, e quem sofreu com as explosões ou estava morto ou pobre, subdesenvolvido, velho, atrasado, ignorante, preconceituoso, inútil, louco; em qualquer caso, descartável. Era a grande maioria, mas uma insidiosa ilusão de ótica a tornava invisível. O medo da esperança era tão grande que a esperança acabou por ter medo de si mesma e deu aos seus seguidores a confusão. Com o tempo, a cidade se tornou o maior problema, simplesmente porque havia muito mais pessoas. A grande questão passou a ser o que fazer com tantas pessoas que de forma alguma contribuíram para o bem-estar daqueles que a mereceram. A racionalidade foi levada tão a sério que uma solução final foi meticulosamente preparada para aqueles que produziam menos, por exemplo, os antigos. Para não violar os códigos ambientais, quando não foi possível eliminá-los, eles foram biodegradados. O sucesso desta solução foi aplicada feita após outras populações descartáveis, tais como imigrantes, jovens das periferias, viciados, etc... A simultaneidade dos deuses com humanos foi uma das conquistas mais fáceis da época. Foi o suficiente para comercializá-los e vendê-los nos três mercados celestes existentes: o do futuro além da morte, o da caridade e o da guerra. Surgiram muitas religiões,..."
Boaventura Sousa Santos, in "Una refléxion sobre la utopía" - Mal Salvaje, Junio 3 2018
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