quinta-feira, 22 de junho de 2023

DA ESCRAVATURA AO HOMEM REINVENTADO, A RACIONALIDADE LOUCA É NECESSÁRIA

 



Desde os primórdios coube aos mais poderosos o direito de levar o castigo aos mais fracos até ao seu extermínio. Em tempos remotos, (crê-se, embora alguns ainda sustentam que essas atrocidades continuam a existir), o mais forte dizimava povos, destruía povoados e matava os mais fracos.

Um género de humanismo que se apiedava dos corpos inertes e sem valia, ou percebia que mais rentável é um corpo vivo que um sem vida, veio iluminar esses seres embrutecidos que num jeito se santa evolução deixaram de matar os vencidos. A vida ganhava valor.

Foi dado um dos grandes pulos na história da civilização, tendo-se abandonado, como regra geral, a mortandade e em seu lugar se criou a escravatura. Não se matará mais o vencido, o mais fraco, mas passou-se a fazer do derrotado uma simples coisa, para satisfação, entretenimento e exploração ao serviço do amo, sem quaisquer direitos, sem reconhecimentos. 




O papado e os reis, nobrezas, igrejas e mosteiros, burguesias e povos conviviam harmonicamente com esses seres que trabalhavam até caírem de exaustão. Até à morte. Eram animais sem alma que serviam os honrados e nobres filhos de Deus. Seres que sofriam os maiores atropelos e horrendos castigos até à morte por vontade de quem é dono, e desse jeito tem, uma grado mandato, para açoitar, espezinhar, martirizar e assassinar. As consciências, sempre elas, o tal de caridoso que tem o homem com o seu semelhante, as ideias novas, as novidades filosóficas e religiosas lá vieram, num curso de tempo apreciável e não sem guerras e tumultos, acabar com a escravatura.

A escravatura teria de ser substituída por uma outra coisa, mais digna, mais próxima do homem, mais consentânea com a nossa semelhança com Deus por via de Seu filho feito exatamente homem, Jesus Cristo. Mas coisa essa que permitisse a continuação de servir aqueles que dominavam sobre grandes extensões de territórios, manufaturas, cidades. E criaram o trabalho a troco de soldo, de sol a sol, sem condições, sem contrapartidas dignas, sem direitos, que apenas permitisse a ideia de sobrevivência. 

As cidades e os campos atropelavam-se de maltrapilhos, fome e muitas doenças. Com a revolução industrial os trabalhadores soçobravam perante trabalhos esforçados, sem quaisquer cuidados nas condições de trabalho, horas sem fim a ritmos absolutamente desumanos. Crescia a burguesia. Apareciam os automóveis, os grandes industriais espalharam os seus poderem pelas sete partidas do mundo. Ao lado de gente sem saúde, sem alimentos, sem vestuário e calçado. Gente suja, feia, que se não confundia com o despertar das novas fortunas e das suas opulências.




A Igreja ajudava à festa, ela sempre pregou aos pobres e se sentou na mesa dos ricos. "Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto". Dos púlpitos e nos bancos das escolas se ouvia elogiar a pobreza, a casinha modesta, a mulher que cuidava da casa, fazia a comida, cuidava dos filhos e via partir todas as manhãs o homem para as minas e para as fábricas.

Com o tempo e a insatisfação levantavam-se tumultos e descontentamentos por todo o lado. Havia uma agitação social generalizada. Os industriais mantinham a ideia de pulso forte, latos ritmos de produção, baixos salários poucas ou nenhumas condições de trabalho. Com as lutas sociais, protestos e greves encontraram de novo a caridade de mão dada ao humanismo, e com tanta boa vontade, a conta gotas, e em resposta a tantas lutas se reduziram os horários de trabalho, se melhoraram as condições de trabalho nas fábricas, se vieram a dar outras compensações como as férias, semana de seis dias, férias, direito a pensões.

 A bem de muitos poucos que têm quase tudo o que o mundo tem, criaram o estado social. Ou seja instituíram que aqueles que para sobreviverem têm de trabalhar, devem ter contrapartidas mais justas, melhores condições de vida, direitos a educação e saúde, de votar para eleger podendo ser eleitos. As mais avançadas são as democracias liberais. Grande parte do mundo ainda vive a anos luz desta vida que alguns povos têm. E foi-se democratizando quase tudo, mantendo, em bom rigor, aquelas elites que sempre houve, fechadas nos seus exclusivos ambientes, onde têm colégios para os filhos, empreendimentos turísticos de luxo para apenas alguns onde se gasta numa semana um que um salário médio não ganha num ano, se apropriando de praias que eram de todos para se tornarem reserva de bilionários. Quase todos podem ter uma casa e um carro, desde que sejam acessíveis. Porque há casas em condomínios fechados, e carros a preços proibitivos. Ainda uns continuam a trabalhar, para que tudo isto pareça uma exemplar sociedade de gente livre, com direitos e de iguais.




Um dia o trabalho vai acabar, se não acabar a terra antes dele, nos moldes em que o conhecemos, com essa carga hedionda que é a hierarquia, os horários e a penosidade. Um dia se utilizarmos bem a inteligência artificial a grande maioria das profissões deixam de fazer sentido. A robótica vai realizar todos os trabalhos pesados, sem falhas e sem riscos. A digitalização vai responder a imensas necessidades de agora e outras que hão-de vir. 

Será que o tal humanismo que sempre parece vir em defesa do homem cuidará de toda essa gente sem trabalho? Será que esses bilionários que detêm a maior parte da riqueza da terra vão abrir mão desse domínio e desse poder? Será que esses seres não terão os seus escravos tecnológicos privativos? Que lhes dão banho, cuidam da saúde, da alimentação, e lhes facultarão objetos de luxo e utensílios de diversão?

Haverá oportunidades para o homem se ocupar de acordo com as suas capacidades e seus desejos. E muitos, se ainda existir essa ferramenta que certamente substituirá o salário, vão ter condições para ter casa para morar, ter museus para visitar, lojas para se apetrechar das coisas que lhe fazem falta, para viajar, tirar fotografias, praticar aventuras e desportos, fazer voluntariado, estudar ou fazer investigação? 




Necessariamente a inteligência humana, que há milénios se tem mostrado incapaz de resolver os maiores problemas da terra e dos homens, terá que mudar o foco, racionalizar mais que se embrenhar por fúteis e vãs vaidades. Disse há mais de um século esse meio aloucado filósofo alemão, Nietzsche, que o homem precisava ser reinventado. Essa verdade é absoluta e intemporal. Ele foi um louco sábio. Os sábios não loucos, que tantas vezes tivemos de seguir e captaram o nosso aplauso foram enterrando o mundo e empurrando a nossa existência para a beira de um abismo que, em bom rigor, tenho dúvidas estejamos em condições de ultrapassar. Os loucos, precisam-se, precisamos de um homem renovado, despoluído, solto de amarras e conceitos que nos emparedaram por milénios. Essa racionalidade que sempre existe na loucura imponha-se, pois, livremente, e se espalhe pela terra.

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